Neukomm – o criador da música de câmara no Brasil
Sigismund Neukomm (1778 – 1858), o aluno predileto de Haydn, é quase um desconhecido, apesar da qualidade de sua música e do sucesso de que desfrutava em sua época. Viajante incansável, trocou o país natal, a Áustria, pela França, passou pelas principais cortes européias, antes de chegar ao Brasil em 1816. A constante itinerância talvez explique o esquecimento: é praticamente igno-rado pelas histórias da música da Áustria e da França, país onde residiu a maior parte da vida. Para os brasileiros, sua obra é primordial e desperta a atenção dos pesquisadores.
“Nasci em Salzburgo, em 10 de julho de 1778, sendo o mais velho de uma grande família, e fui batizado com o nome de Sigismund. Sem ser um prodígio, como o imortal Mozart, que também nasceu em Salz-burgo em uma casa vizinha à nossa, minhas aptidões foram precoces…”
A exemplo de Joseph Haydn, e consciente da importância de sua obra, Neukomm escreve a autobiografia, publicada logo após a morte. Trata-se de prática até então incomum, porém condizente com o novo status dos compositores, que, ao final do século XVIII, deixam de ser meros artífices e galgam a posição de criadores.
«Cheguei a Viena em fins de março de 1797. Joseph Haydn, sob a recomendação expressa de seu irmão Michael, recebeu-me muito gentilmente, e concordou em admitir-me como mais um de seus alunos, principalmente no que se refere aos aspectos estéticos, já que eu havia concluído os estudos teóricos. Tive a felicidade de rapidamente merecer a afeição do meu mestre, que me dedicou um amor paternal, e a lembrança de sua bondade nunca seria apagada.»
Nasce a amizade que só seria interrompida pela morte de Haydn, além de uma intensa colaboração musical. Neukomm participou da orquestração e fez transcrições para piano de “A Criação”, “O Retorno de Tobias”, “As Estações” e “As Sete últimas palavras de Cristo na Cruz”.
” A partir de janeiro de 1804, iniciei o catálogo de minhas obras, em ordem cronológica, e continuei regularmente até a presente data (10 de novembro de 1853), onde relaciono as 1 780 obras mais relevantes de minha produção. Este catálogo contem, além dos primeiros compassos de cada uma das minhas composições, o local e data onde a obra foi terminada..”
Trata-se do primeiro catálogo temático da história da música, em que, além da descrição, consta o trecho inicial de cada obra, para facilitar sua identificação. Graças a esse catálogo, cuja cópia em dois volumes foi feita pelo irmão de Neukomm, Anton, conservado hoje na Biblioteca Nacional da França, conhece-se a extensão e a cronologia de suas quase 2000 obras, quase todas editadas na época, o que comprova o seu prestígio.
Neukomm acompanha Talleyrand ao Congresso de Viena e desperta desconfianças, como se lê na biografia do Príncipe escrita por Jean Orieux:
“Um dos personagens da comitiva de Talleyrand era tão misterioso que tirou o son o da polícia austríaca. Sabia-se da existência desse personagem que ninguém havia visto. Os relatos fixaram, entretanto, um detalhe: ele tomava suas refeições em uma pequena mesa do aposento de Talleyrand. Durante a noite, espiões esgueiravam-se ao longo das paredes e ouviam acordes de um piano até o amanhecer. Conclui-se que aquela música não tinha outro objeto que o de esconder as vozes dos conspiradores. Foram necessários quinze dias e a complacência de Talleyrand para que soubessem que o personagem chamava-se Neukomm, austríaco, de 36 anos, seu pianista há seis anos. Havia-o incumbido de compor um Te Deum pelo retorno do rei Luís XVIII. … A despeito desse esclarecimento, todos os membros do Congresso estavam persuadidos de que tratava-se de um espião”.
Durante o Congresso, Neukomm compôs e dirigiu, auxiliado por Salieri, o Réquiem em homenagem a Luís XVI, com a participação de dois coros, em um total de 300 cantores. Em reconhecimento, recebeu, dez dias depois, a comenda de Cavaleiro da Legião de Honra. O Te Deum a que se refere Orieux foi apresentado após o Congresso, em 8 de julho de 1815 na igreja de Notre Dame de Paris, para festejar o retorno de Luís XVIII a Paris, quando da derrota definitiva de Napoleão em Waterloo. A relevância musical e histórica das obras em homenagem aos dois reis de França dão a dimensão da importância do compositor na Europa do início do século XIX.
“Em 1816, aproveitei-me da vantajosa oferta feita pelo Duque de Luxemburgo, para acompanhá-lo ao Rio de Janeiro…”
Neukomm fazia parte da relação de artistas da Missão Francesa, mas, ao contrário do esperado, não veio. Preferiu viajar oficialmente, como integrante da comitiva do Duque de Luxemburgo, Embaixador extraordinário enviado por Luís XVIII ao Brasil.
“O Príncipe de Talleyrand havia me entregado uma carta de recomendação para o Conde da Barca, que, anteriormente Embaixador de Portugal em Paris, havia estado intimamente ligado ao príncipe. Esta recomendação foi-me muito útil depois. O Conde da Barca era um homem de mente esclarecida e tinha grandes conhecimentos. Recebeu-me com notável benevolência, e quando, algumas semanas após nossa chegada, o Duque de Luxemburgo decidiu retornar à França, o Conde propôs-me ficar no Rio de Janeiro, oferecendo-me casa e comida. “Temos a esperança, disse-me, de fundar um novo império neste Novo-Mundo, e você terá grande interesse em ser testemunha deste período de desenvolvimento.”
O Conde da Barca era, ao lado de Talleyrand e Metternich, um dos mais brilhantes diplomatas de sua época. Graças a ele, Portugal conseguiu manter a neutralidade durante as guerras napoleônicas. Devemos a ele a nossa imprensa, pois trouxe em sua bagagem particular os prelos e tipos comprados em Portugal para a Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, e que ainda estavam encaixotados. Montados no porão de sua casa no Rio de Janeiro, logo estaria operacional a primeira tipografia em terras brasileiras.
“Aceitei sem pestanejar a sua generosa oferta. Ele era como eu solteiro e tinha como única companhia um amigo de idade, o Dr. Carvalho, homem muito distinto, médico da infanta Dona Isabela, futura regente de Portugal.”
Barca faleceu em 1817 nos braços de Neukomm…
O compositor chega ao Brasil no auge da disputa entre José Maurício e Marcos Portugal pela preferência de D. João. Logo percebeu que não havia espaço para ele na Capela Real, palco principal do duelo entre seus talentosos colegas. Não havia música de câmara, música para piano, música para bandas, música sinfônica … Neukomm, nascido no berço do classicismo, a Áustria, onde rei-nava a magnífica obra de seus conterrâneos Mozart e Haydn, inaugura esses repertórios no país!
Inicia ainda a prática que tornou-se a marca registrada da produção musical brasileira: a mistura de gêneros clássicos e populares. Inspirou-se na modinha – “A Melancolia” – de Joaquim Manoel da Câmara para escrever a fantasia L’Amoureux, dedicada ao Barão de Langsdorff, cônsul-geral da Rússia no Brasil a partir de 1813. Casado com uma antiga aluna de Neukomm em São Petersburgo, a residência dos Langsdorff era ponto de encontro dos amantes da música, que se reuniam para tocar as novidades chegadas da Europa. Os saraus aconteciam também na casa do Marquês de Santo Amaro, onde Neukomm passou a residir após a morte do Conde da Barca. Nessas ocasiões solidificou-se a amizade com o Padre José Maurício.
“A dedicação, com a qual Padre Garcia resolveu todas as dificuldades, para finalmente realizar aqui uma obra prima do nosso imortal Mozart, recebeu o mais caloroso agradecimento dos amantes da arte locais. De minha parte, considero uma obrigação utilizar esta oportunidade para tornar esse homem conhecido em nosso meio cultural europeu, ele que é notado por sua grande modéstia e, provavelmente, graças a esta oportunidade, é a primeira vez que seu nome é citado. Ele tem o mais merecido direito desta honrosa distinção, visto que sua formação é a sua própria obra. … A execução do Requiem de Mozart não deixou nada a desejar, todos os talentos colaboraram para tornar o genial Mozart apreciado neste novo Mundo. Esta primeira experiência teve tão bom resultado, que esperamos que não seja a última.”
Neukomm compôs o Libera me Domine para concluir essa primeira apresentação no continente americano do Requiem de Mozart. Nessa matéria enviada ao Allgemeine Musikalische Zeitung em 1820, afirma a admiração pelo Padre mestre, considerado por ele o maior improvisador e acompanhador que havia conhecido.
O compositor escreveu no total 70 obras no Brasil, entre as quais 14 peças para pianoforte, 11 para pequeno conjunto de câmara e 18 para bandas, além da primeira sinfonia escrita no país! Em 1819, compõe O Amor Brasileiro, capricho sobre um lundu dedicado à Mademoiselle Donna Maria Joanna d’Almeida. Talvez fosse ela a quem se referia quando escreveu que, entre seus alunos, havia…
“…uma senhorita de 16 anos, que tem aptidões extraordinárias e uma aplicação pouco comum. Ela faz progressos espantosos, mesmo que me tenha sido necessário empregar os primeiros meses para fazê-la esquecer o pouco que tinha aprendido em mais de 3 anos, para enfim colocá-la no caminho certo. Como havia concluido sua educação, pensei poder exigir que trabalhasse ao menos 8 horas todos os dias; ela achou que isso não era suficiente e a pobre criança trabalha mais de 10 horas, seguindo escrupulosamente as indicações que lhe dei.”
Encantado pelo talento do violeiro Joaquim Manoel da Câmara, Neukomm registra vinte de suas modinhas, publicadas quando de seu retorno a Paris em 1821. Trata-se de um dos únicos registros da música tipicamente brasileira do início do séc. XIX, e o único testemunho da arte do modinheiro.
Além do Príncipe D. Pedro, Neukomm foi professor de Francisco Manoel da Silva, autor do hino nacional. Coincidência ou não, a Fantasia para flauta escrita por Neukomm em Paris em 1823, pouco após deixar o Brasil, apresenta o desenho melódico mais marcante do nosso hino, datado de 1831.
Spix e Martius, em seu livro Viagem pelo Brasil, afirmam que a cultura musical no Brasil não estava suficientemente madura para a música de Neukomm, escrita no melhor estilo vienense.
A despedida, em 1821 inspirou diversas obras, entre as quais um cânone para oito vozes sobre as sílabas:
«C-a-ca, p-r-i-pri, capri, c-o-r-cor, capricornia
Carioca, Corcovado vado vado
Addio, addio »
A tristeza da partida é admiravelmente ilustrada pela canção Addio. Ao mesmo tempo plácidas e melancólicas, as peças exprimem a nostalgia que se instala à medida em que a fragata Matilde se distancia das praias do Rio:
“Peço-vos perdão amigos, se não me despedi
com minha dor e com meu pranto não vos queria perturbar
Desejo, então, que os acordes do céu tragam dias serenos e honrados
que o zelo, com o coração agradecido não cessará de implorar.
Adeus, adeus”(texto da canção “Addio, addio”, escrita a bordo da fragata Matilde, ancorada na Baía de Guanabara, 14 de abril de 1821 às 18 horas)
Rosana Lanzelotte iniciou em 2003 as pesquisas sobre Sigismund Neukomm visando o Ano do Brasil na França, em 2005. Ao lado de Ricardo Kanji (flauta), acaba de gravar para o selo Biscoito Fino o CD Neukomm no Brasil, com as obras que inauguram o repertório de música de câmara no país.